quarta-feira, março 02, 2005

UM DESASSOSSEGO

Anos 70: os relógios de quartzo, com sinal horário e alarme sonoros.

Uma sala de cinema. Um filme a correr. Pouco antes da hora certa: pipi-pipi, dum lado; pipi-pipi, do outro; pipi-pipi, doutra banda. À hora certa: um inferno de pipi-pipi…PIPI-PIPI…pipi-pipi…PIPI-PIPI… Um desassossego.

Segundos depois, os atrasados: mais pipi-pipi; quase a seguir: pipi-pipi; logo depois: pipi-pipi…

De quando em vez, fora das horas certas, são os alarmes. Quando o filme vai no melhor: é pipi-pipi-pipi daqui, pipi-pipi-pipi dacolá, pipi-pipi-pipi dalém, pipi-pipi-pipi daquém… PiPI-PiPI-PIPI… Mais pipi-pipi-pipi… Sempre pipi-pipi-pi.

Sempre o mesmo inferno.
Mas o pessoal curou-se.

E temos sossego?

Está bem, está…

Hoje?
Hoje são os telemóveis: durante o filme empolgante; durante a conferência onde nem as moscas se ouvem; é durante o velório do amigo, no meio da algazarra que família e amigos fazem; é durante a reunião de gente circunspecta que decide coisas graves; é durante a missa do sétimo dia daquele mesmo amigo do velório de há dias atrás (mas aqui com mais algum silêncio e sem aquela vozearia); é durante a consulta, enquanto o médico lê, atento, as radiografias expostas na caixa de luz, ou avalia as análises do paciente; é no café, quando a maior parte das pessoas fala em surdina e outros lêem o jornal; é na aula; é no autocarro; é na sala de espera do advogado ou durante um julgamento; é na algazarra do futebol; é na barafunda do trânsito… É a toda a hora e em toda a parte: o celular com um sem fim de melodias, qual delas a mais exótica, a mais clássica ou a mais convencional.

Este inferno vai custar mais a curar-se – se é que se vai curar.

Mas hão-de surgir outros. Sempre cada vez mais perturbadores e incomodativos.


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